Frida Kahlo, maravilhosa e visceral
por Daniel de Souza * – “Que maravilha!” Consta nos diários de Cristóvão Colombo esta frase para descrever os primeiros contatos do navegador genovês com o novo mundo. Séculos mais tarde, o escritor cubano Alejo Carpentier (1904-1980) aplicou o conceito de maravilhoso à realidade do continente americano e à Arte produzida nele.
Para Carpentier, o mágico, o absurdo, ou, se preferirem, o surreal em nosso continente é parte integrante do cotidiano e de nossa realidade. Em nós, diferentemente do que ocorre com os europeus, consciente e subconsciente se fundem num só, num todo, não há uma divisão. Fatos históricos e fenômenos naturais comprovam a magia e a maravilha do continente, basta-nos observar as linhas de Nazca, ou a arquitetura maia, ou ainda o Titicaca, lago navegável mais alto do mundo e berço da civilização inca.
A mestiçagem também é um componente a mais para nos tornar um povo, de certa maneira, mais propenso, mais ligado à magia e ao “absurdo”. Basta ver a nossa religiosidade, misto de religiões africanas, européias e indígenas. O vodu haitiano, o candomblé baiano são testemunhos do quão arraigado está em nossa carne o ilógico, (ilógico aqui quer dizer aquilo que não obedece a uma lógica cartesiana) e o quão arraigado está em nós o onírico, o imaginado.
É neste sentido que o “maravilhosa” do título vem adjetivar Frida Kahlo (1904-1954), pintora “surrealista” mexicana. Diferentemente do que ocorre com os pintores surrealistas europeus, mais notadamente o expoente Salvador Dali, que têm uma grande influência e uma tremenda assimilação das teorias freudianas, em Frida o surrealismo parece ser algo intrínseco, quase que naïf, como se, para ela, aquela fosse a única maneira possível de se expressar e de pintar.
Em Frida o ilógico é a única lógica. Suas metáforas parecem brotar tanto do centro de sua Terra – observar os quadros Eu, o Diego e o senhor Xólotl (1949), Flor da vida (1943), e O Sol e a vida (1947) – quanto de dentro dela mesma – observar as telas O veado ferido (1946),Árvore da esperança (1946), A coluna partida (1944; ao lado), esta última uma das telas mais fortes de todos os tempos.
Para explicar o outro adjetivo, visceral – que vem de vísceras, e quer coisa mais subjetiva do que as próprias vísceras? – teremos que dar uma pincelada em alguns dados biográficos da artista.
Frida Kahlo teve uma vida recheada de dor (é possível criar sem sofrer?). Filha de um pai epiléptico e de uma mãe extremamente religiosa, Frida, aos seis anos, teve poliomielite, o que a deixou com uma perna mais fina que a outra e com o pé esquerdo atrofiado, além de lhe render o apelido de “perna de pau” na escola. Aos dezoito anos, a pintora sofreu um acidente de automóvel, que lhe esmagou a coluna vertebral e lhe deixou impossibilitada de ter filhos. Tudo isso, mais as dúvidas quanto à própria sexualidade e mais a questão da identidade são temas constantes em sua obra.
Para mim, que sou um romântico declarado, a grande Arte é movida muito mais pela paixão que pela razão, e… Frida faz isso. Sua Arte é tão íntima, tão pessoal, tão “ego” que se torna universal, humana, “self”. Suas telas são todas metáforas de fatos, opiniões, sentimentos e situações pessoais. Frida Kahlo nos seduz pelo coração e não pelo intelecto. É mais ou menos o que Vincent Van Gogh também procurava fazer.
Outro aspecto importante a seu respeito, e que não poderia ser deixado à margem, é a questão da arte feminina. Frida é uma das primeiras pintoras a abordar de fato questões relacionadas ao universo das mulheres, como a maternidade, ou a impossibilidade da maternidade, por exemplo (ver as telas Nascimento (1932), A cama voadora (1932) ou ainda a questão da violência contra a mulher, que a pintora retrata tão bem na tela Uns quantos golpes (1935).
Toda a obra da pintora é fascinante, mas todo artista tem aquelas obras que de fato são fora do comum, realmente impressionantes e que nos deixam boquiabertos. No caso da mexicana, as duas obras de tirar o fôlego são a já citada A coluna partida e As duas Fridas (1939). Esta, pintada pouco depois do divórcio da pintora com o também pintor Diego Rivera, é um auto-retrato composto por duas personalidades diferentes. No trabalho, Frida trata das emoções envolvidas na separação. A parte de si que era respeitada por Diego Rivera é a Frida mexicana, com trajes pré-colombianos e com uma pequena fotografia nas mãos, enquanto a outra Frida, não tão respeitada assim, leva um vestido branco mais europeu. Os corações das duas mulheres estão expostos e são ligados, um ao outro, apenas por uma artéria e a parte européia de Frida corre o perigo de se esvair em sangue até a morte, uma vez que uma das veias de seu coração, embora meio que obstruída, ainda sangra, manchando de vermelho o belo vestido branco.
É difícil pra mim, quando estudo, ou apenas aprecio a obra de Frida Kahlo, não estabelecer um paralelo com a canção “Beatriz”, do Chico Buarque, principalmente na voz de Milton Nascimento. Se repararmos nas expressões faciais da maioria das telas da artista, perceberemos uma certa imparcialidade de sentimentos, como uma atriz que se despe de si mesma para melhor se enxergar. Olhando somente para seu rosto, fico imaginando, “Será que ela é triste / Será que é o contrário / Será que é pintura… / E se eu pudesse entrar na sua vida…”
Então me deparo com o quadro A Máscara (1945), que inverte o principio da máscara, onde encontramos a verdadeira Frida, nua e desesperada. E eu posso entrar na vida dela, mesmo com vinte quatro anos separando sua morte do meu nascimento. Hoje escrevi essas linhas só pra dizer a ela que a amo e a entendo. É pouco, eu sei, mas “Se um dia ela despencar do céu / e se os pagantes exigirem bis / e se um arcanjo passar o chapéu…” quero estar por aqui e ter mãos carinhosas e palavras doces na língua pra dizer a ela.
Beijos, Frida.
* Daniel de Souza Lopes é formado pela UNESP e participou do curso de mestrado em Teoria Literária da USP. É professor de Literatura e Língua Portuguesa e Espanhola do Colégio Objetivo e da Rede Pública Estadual. Lançou recentemente seu primeiro romance, É preciso ter um caos dentro de si para criar uma estrela que dança, pela Editora Os Viralata. Blogue:pianistaboxeador21.blogspot.com.
* Daniel de Souza Lopes é formado pela UNESP e participou do curso de mestrado em Teoria Literária da USP. É professor de Literatura e Língua Portuguesa e Espanhola do Colégio Objetivo e da Rede Pública Estadual. Lançou recentemente seu primeiro romance, É preciso ter um caos dentro de si para criar uma estrela que dança, pela Editora Os Viralata. Blogue:pianistaboxeador21.blogspot.com.
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